“(…) São 13H34 e a porta ainda não abriu. No corredor estreito todos se
acomodam do jeito que é cabível e apenas por educação esboçam um sorriso de ‘oi’
com o canto dos lábios. Os quatro minutos de atraso foram mais que suficientes
para que o espírito de inquietude tomasse conta daqueles poucos metros quadrados.
Pernas balançam, alguns andam de um lado para o outro e nada se houve além de
ecos provindos de outros andares. O silêncio é ensurdecedor, pressiona o peito e
tira o ar completamente… oh, meu Deus, cuide dessa próxima hora que vamos
vivenciar e que não tem mais volta…”
… ELE ENTÃO CUIDOU NOVAMENTE
A fechadura se move lentamente e uma das enfermeiras de plantão coloca o rosto na
fresta da porta semiaberta. Antes de esboçarmos qualquer reação, a profissional
desferiu um sorriso largo e, sabendo o quão agoniante deve ter sido aqueles
quatro minutos de demora, fez questão de dizer que estava tudo bem e que o atraso
não tinha relação com qualquer intercorrência que fosse.
As palavras de acalanto foram providenciais e, aparentemente, era tudo o que nós,
os pais, queríamos ouvir naquele instante para seguirmos mais aliviados rumo à
fila de higienização.
Da porta para dentro cada um tem seu hábito particular e sagrado antes de lavar
as mãos. Alguns entram orando, outros espiam primeiro a incubadora da cria e, eu,
procurava praticar os dois ritos: entrava orando e seguia rumo ao acrílico que
acolhia meu diamantinho.
Sabe, minha filha nasceu miudinha, com 29 semanas, 36cm, 0.975 gramas, e, de
longe, figurou por dias como a mais frágil dos bebês que ali estavam. Devido sua
condição que foi cercada de intercorrências nebulosas, a localização da Laís era
bem ao fundo, na ala de ‘alto risco’, ou seja, prematuros complicados que tinham
pouquíssimas chances de sair com vida daquele lugar.
Ainda de longe, eu observava a saturação, os batimentos, e depois, na mesma
sequência de olhares, a cabeça seguia automatizada para o lado esquerdo da
incubadora, pois era lá que estava uma lousa branca contendo dados sobre a
evolução da minha filha nas últimas 24 horas, como peso, tamanho, resultados de
exames, etc. Bom, fato é que, dependendo do que era percebido por mim, eu voltava
à fila feliz e confiante ou triste e preocupado.
Neste dia, porém, me tranquilizei de cara. Embora seu quadro clínico não
estivesse lá uma maravilha, meu ‘olhômetro’ considerou a situação estável (embora
fosse necessário aguardar o parecer da médica que passaria em todos os leitos, um
a um).
Ensaboava o vão nos dedos e as mãos até o antebraço, até dar vez ao álcool gel
que tornou-se um grande aliado no combate às bactérias. Todo cuidado é sempre
pouco quando a pauta é a saúde de quem se ama, principalmente no caso dos bebês
prematuros que são muito suscetíveis às infecções, e pq os orifícios da
incubadora eram sempre abertos para a ‘sessão carinhos’ – de lei.
Já ‘despoluído’ meus passos seguem definitivamente no sentido daquele
insubstituível amor maior. E, ao chegar perto da incubadora, coloco as duas mãos
no teto do acrílico e encosto meu rosto com ar de homem mais feliz do mundo.
Sempre ficava maravilhado com o que via. Era um milagre, era a perfeição de Deus
ali na minha fuça. Cada dia o afeto se renovava em um amor diferente, mais puro,
mais real, mais concreto e mais palpável. Sorrindo discretamente começo a
conversar baixinho e separo bons minutos para nossa prece diária, isso já com os
braços imersos ao acrílico que testemunha um bom cafuné, composto bem
devagarzinho como o tocar de um instrumento na plenitude da música clássica.
Essa tarde não teremos o método canguru e a Laís não ficará em meu aconchego
pelas duas horas ao qual tanto esperamos quando o dia amanhece. Já sabendo disso,
procuro mimar ao máximo aquele pequeno ser nos poucos instantes que tenho,
fazendo questão de dizer o quanto ela é amada, e sem deixar de passar a segurança
de que nada ruim irá lhe acontecer. Meus dedos deslizam entre o auge de seu
pequeno couro cabeludo até o queixinho, movimento este que se repete dezenas de
vezes. Cantamos, oramos, conversamos…
Diariamente peço a Deus que fortaleça a fé da vitória em meu coração para que eu
consiga transmitir a ela toda serenidade que necessita para se recuperar em paz.
Na UTI Neonatal não podemos titubear na fé pq os bebês sentem a energia. Nunca
devemos confessar algo ruim ou simplesmente chorar próximo a eles, embora vez ou
outra tenha sido dificílimo segurar as lágrimas que escorreram sobre a lateral da
incubadora.
Conforme os minutos vão passando a médica se aproxima do nosso leito e, quando
chega, mostra papéis, exames e relatórios que foram preenchidos hora a hora no
último dia. Hoje, minha Laís ganhou os parabéns, e glória a Deus por isso. Quando
as coisas acontecem dessa forma é praticamente uma noite de sono a mais que
ganho, além de ter garantido o apetite do jantar, que desde os primeiros
problemas gestacionais custa em aparecer na rotina considerada normal.
Infelizmente boas notícias são privilégios de poucos na Unidade de Terapia
Intensiva, então, quando você está inserido neste hall de felizardos, é motivo de
grande comemoração mesmo. A doutora se vai, o horário da visita se encerra e
preciso me despedir da Laís. A ligação é tão forte que ela parece adivinhar que
vai ficar sem mim nas próximas 24 horas. Os aparelhos que até então trabalhavam
de forma estável começam a apitar e a bebê fica agitada e chora alto. Ali é a
prova viva de que o amor e a fé curam, e isso que eu buscava enxergar e que Deus
estava me mostrando dia após dia, sem pressa e me fortalecendo como ser humano.
A enfermeira me conduz até a porta e fico observando a prematura mais linda do
mundo se distanciando. Ela chora, a porta se fecha e o coração em pedaços me faz
desmoronar no elevador vazio. O que mais consolou em mais esse dia implacável são
as palavras da médica de que não havia com o que se preocupar, pois aparentemente
tudo estava bem na luta pela vida.
Faz-se necessário curtir, vibrar e aproveitar, porém, nunca se empolgar com uma
melhora (nem se desesperar com uma piora). E é dessa forma mesmo, um dia de cada
vez, sempre.
Mas nossa alta hospitalar virá, tenho fé…
* CONTINUA EM BREVE NA PARTE 3 (o depois);
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