Ainda busco uma palavra capaz de ilustrar o sentimento que envolve a perda do HANGAR 110, templo do Rock Alternativo de SP, que anunciou 2017 como sendo seu derradeiro ano de atividades em prol da música.
Para nós, músicos e/ou clientes, o Hangar tinha uma espécie de blindagem divina que jamais permitiria suas portas se fecharem para sempre.
E não importa se estávamos visitando-o (ou não) com frequência, era confortante saber que o pico tinha seus braços estendidos para quando quiséssemos nos livrar do stress diário e fazer um bate-cabeça, dar um mosh, ou simplesmente encostar no balcão para observar aqueles pôsteres clássicos antes de curtir um rockinho ao vivo, like a boss, escorado na pilastra central da casa.
Este era um rito mais do que revigorante para que pudéssemos encarar a segunda-feira seguinte com o loading em 100% na intenção de começar tudo outra vez.
A voz chega embarga só em imaginar que passaremos por lá em 2018 e não sentiremos no ar aquele cheiro de show e o clima de Música e Cultura feitos com a alma por artistas que, em sua maioria, não subiam naquele palco por grana, e sim, por amor verdadeiro à arte.
Aliás, essa fragrância de show feito com o coração exalava desde que descíamos na plataforma da estação Armênia do Metrô ou cruzávamos de carro ou Van a esquina da Rua Rodolfo Miranda com a Avenida Tiradentes.
Para as bandas independentes, tocar lá era a consagração; para o público, uma espécie de ‘batismo’. E isso não é saudosismo. Quem vivenciou entende bem o que estou dizendo.
O sentimento de ir ao Hangar 110 era incrível pq o dia todo criava-se uma expectativa em torno do tal rolê de logo mais, tanto para quem tocaria quanto para quem colaria para curtir.
Tratava-se de uma peregrinação intensa e ao mesmo tempo imprevisível, já que, por diversas vezes, íamos para ver a banda do amigo e saíamos de lá cheio de novas bandas favoritas – e suas respectivas fitas/cds-demos no fundo da mochila.
Uma verdadeira celebração que incluía a diversidade dos gêneros coirmãos, como o Rap, o Hip Hop e o Reggae, que vez ou outra se trombavam para um abraço fraterno e verdadeiro.
O Hangar 110 transcendeu o que conhecemos por ‘casa de shows’, e sagrou-se, de forma natural, como um verdadeiro patrimônio cultural da música não só paulistana, mas brasileira.
Ao dar vida à casa, o Marco (Alemão) possibilitou que talentos fossem revelados, pois abriu portas aos que sonhavam pisar em um palco de verdade e ter sua arte valorizada de um jeito merecido e que fizesse valer a pena toda correria de bastidores.
Não importava o ‘tamanho’ da banda, sempre existiu padronização no tratamento entre os grupos/integrantes, que, apesar de parecer o básico, encantou e tornou-se um diferencial devido tanto descaso proporcionado pelos concorrentes mal preparados que foram ficando pelo caminho.
Artista é artista independente do tamanho de seu público, até pq, a pessoa nunca deve ser maior do que a própria arte. Jamais o ego do artista deve protagonizar um filme que é todo voltado à sua arte. E essa máxima era uma das características mais admiráveis de lá – e uma aula de empreendedorismo aos que nunca souberam administrar um rock bar de verdade.
Pensar dessa forma fidelizou não apenas os menores, mas também os gigantes, pois as bandas que tocavam lá quando ainda usavam fraldas não abandonaram o lugar mesmo chegando à maioridade, caso do CPM 22 e do NX Zero, por exemplo.
Mas, seguindo a linha do ‘tudo o que é bom dura pouco’, parece que, infelizmente, chegamos ao fim da linha, não é mesmo, família?
Bom, enfim… de repente não tratamos o Hangar 110 com a mitologia que ele realmente mereceu ao longo dessas quase duas décadas de contribuição à nossa cultura, e talvez valha repensar o papel que desempenhamos para que essa ‘falência’ fosse desencadeada e, principalmente, o que fizemos nos últimos tempos em prol da nossa cena de forma sustentável.
De qualquer forma, quero deixar registrado o meu MUITO OBRIGADO ao Marcão (Alemão) e toda equipe, e a todas as bandas, staffs e galera foda que colou lá e fez tudo se tornar inesquecível durante esses 19 anos.
Ali puder ver bem de perto artistas que admiro, ali conheci novos artistas que passei a admirar, ali tive a honra de lançar álbuns e gravar clipes (tocando o puteiro sem censura), e ali é um lugar em que fiz muitas amizades que até hoje estão intactas. Indiscutivelmente um lugar que vai morar para sempre em meu coração e sempre que eu passar ali na frente vou contar à minha filha o quão surreal foi viver tudo isso.
EXISTE EXPLICAÇÃO PARA O FIM?
Embora seja óbvio, passou despercebido por nós que o Hangar é um estabelecimento comercial e não consegue se manter sem uma renda bacana para rodar com qualidade os eventos aos finais de semana.
E o encerramento das atividades no Hangar seja talvez a pá de cal que faltava para chancelarmos de vez o momento estranho (para não dizer deplorável) que vive o Brasil especificamente em dois aspectos que impactam diretamente o consumidor final: a crise financeira e a indústria musical.
– A crise: por não permitir que a galera curta mais de um show por semana ou, quiçá, por mês.
Quem não tem grana não sai de casa, e isso, claro, atrapalha o negócio do empresário, pois, naturalmente tornou-se desinteressante abrir o lugar e se expor às altas despesas, tendo, na maioria das vezes, meia dúzia de gatos pingados em frente ao palco balançando a cabeça e segurando uma lata de cerveja (fazendo-a render ao máximo por estar sem grana até para o ‘goró nosso de cada dia’).
E este ‘sumiço’ do público impacta também na contratação das bandas consideradas maiores, saca? Aquelas que geralmente fisgam o público e o incentiva no consumo do bar, na compra de ingressos, no giro do merchan, enfim, bancando efetivamente a manutenção econômica do negócio.
– A indústria musical: é inegável que o atual momento do nosso território está baseado em tudo quanto é estilo, menos em Rock.
Entenda: não estou dizendo que isso seja ou não justo, até pq gosto é uma parada muito pessoal e intransferível, portanto, não deve ser julgado.
Mas é nítido que o Rock no Brasil vem perdendo espaço – na grande mídia – há alguns anos e com os investimentos seguindo contrários a ele, o que o torna (momentaneamente) um “mau negócio” 360 graus para todos os que estão diretamente envolvidos com o estilo. E isso, óbvio, abala em primeira instância nos músicos independentes – também conhecidos como super-heróis da indústria.
A crise financeira, a falta de investimento no Rock e, claro, o ainda não citado ‘peso da idade’, são fatores determinantes para que muitas bandas joguem a toalha. Mas entenda: isso não tem relação com fracasso, falta de talento ou ‘desistir do sonho’ e blá, blá, blá. É uma questão que envolve perspectiva x prioridade x realidade.
Chega um momento em que a vida nos traz responsabilidades muito embaçadas e complexas do que o sonho adolescente, manja? E elas geralmente chegam a uma velocidade cinco vezes maior do que a de ser reconhecido pelo trabalho como músico no underground. Enfim… ser adulto é definitivamente uma bosta.
De repente, nem a parte gostosa da coisa, que é o palco, passa a fazer mais sentido.
O cara injeta o salário, o tempo, aí coloca mais salário, em seguida mais uma pitadinha de tempo, perde a namorada (ou namorado), investe o físico, o emocional e a vida na banda, e, quando vê, só acumulou prejuízos. Já que, conforme mencionei, o retorno que fazia toda correria (e roubada) valer a pena era o palco, e só. Ali é o momento mágico, o resultado final, a colheita, o instante sublime e motivador.
Funciona meio que assim ó: você se mata anos e anos para desenvolver um conteúdo relevante para os fãs/amigos, e quando senta para analisar e/ou fazer um balanço, identifica que o mais inesperado e desesperador aconteceu: a arte perdeu peso na balança.
A arte que você tanto faz com amor não vale mais nada nessa bagaça. A indústria musical agora se interessa por coisas que transcendem o ingrediente principal de um artista, que é sua ARTE (e toda atitude que a envolve), passando a valorizar coisas ‘realmente relevantes’, como cabelos, traseiros e roupas.
É neste momento que você para, põe a mão na consciência e entende que toda parte burocrática conseguiu lhe tirar também o tesão de subir no degrau mais alto para empunhar um instrumento e fazer sua música. É o fim da linha.
A geração que fez do Hangar 110 point cresceu e não houve reposição mesmo com nós, daquela época, tentando incentivar os mais novos dessa geração a dar continuidade ao processo, pois, a (desleal) mídia é feita contrária aos argumentos que utilizamos, então, perdemos força para o ‘Sertanejo’ Universitário e o ‘Funk’ Carioca, que fazem a rapa nos dias de hoje.
Em suma: vivenciamos a tal ‘cadeia’ de fatores.
A indústria musical do país está uma bosta, a nádega virou prioridade e o cérebro opcional, ninguém tem dinheiro para nada, as bandas desanimam, brigam e acabam, o público broxa pq cresceu e agora só trabalha (e não se diverte), os picos fecham suas portas, e nós ficamos cada dia mais órfãos da verdadeira arte.
Na boa? Só Deus na causa. É sério!
Na torcida por uma solução. Todos merecemos!
Obrigado, Hangar 110! #VidaLonga <3
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Foto: Fernando Guifer (24.11.2017)