Dias desses uma mulher do meu prédio chegou em mim e disse:
– Sua filha tem problema? Ela fica gritando e os vizinhos já estão reclamando! -.
Talvez ela tenha razão em expor seu incômodo, mas a forma como falou, me rasgou profundamente, pq, sem nenhum cuidado, tocou em minha ferida mais aberta, sabe?
Confesso que não sabia nem o que responder, fiquei paralisado. Mas ela também não tinha obrigação em ser cortês com um problema que é MEU, né?
Criar expectativas em torno da sensibilidade das pessoas é um grande equívoco, já que esse negócio de ‘ter coração’ é pra pouquíssimos nos dias atuais.
“Senhora… minha filha tem sim um déficit acentuado em seu desenvolvimento devido sua condição de prematura extrema, uma vez que passou 80 dias na UTI e teve diversas intercorrências, como hemorragia no crânio, no pulmão, muitas anemias, entre outras graves doenças.
Mas ela não grita pq é louca ou pq tem “problema”, acredite!
A Laís grita pq, apesar de todas as dificuldades que a vida já lhe impôs desde o nascimento, ela é uma criança extremamente feliz.
Mesmo com quatro anos e meio ela ainda não fala, e por isso o “grito” acaba sendo sua única forma de comunicação conosco, pais, na hora de pedir algo, ou quando precisa extravasar toda felicidade que sente ao receber um abraço, um beijo ou uma troca de olhares sincera.
Fique tranquila. Avise aos vizinhos que minha filha não vai machucar ninguém. Ela é só uma criança que não sabe nem o que está acontecendo.
Aliás, ela é o poço do carinho e da pureza. Ela deseja apenas ser compreendida e amada pelas pessoas…
E para sua condição intelectual, cognitiva, social e raciocínios evoluírem conforme o esperado, ela precisará fazer um pouquinho de barulho às vezes. Me desculpe.
Não é por maldade, mas tentarei (não sei como) diminuir o tom das reações de felicidade que ela terá a cada conquista nesse árduo e preconceituoso jogo da vida.
Saiba que, enquanto para alguns isso tudo significa não conseguir ouvir a novela direito, pra gente, cada micro-avanço dela é motivo de lágrimas positivas. Cada aprendizado é nosso grande presente divino.
Mas eu sei que é difícil compreender a felicidade de um ser iluminado quando se nasce perfeito e não precisa valorizar as coisas mais simples da vida, como, por exemplo, uma sílaba dita pela filha que não fala.”
Enfim…
Se eu disse tudo isso a essa mulher? Claro que não. Não tive coragem. Me senti culpado ainda. Pq é assim que as pessoas fazem a gente se sentir. E não há como argumentar em um mundo em que a intolerância é a grande palavra-mãe.
Apenas abaixei a cabeça, disse que procuraria não gerar mais transtornos ao prédio e saí…
MAS, GENTE…
Quando vocês se depararem com uma criança especial, muito cuidado com o tom da abordagem que vão fazer aos pais. É sério.
NINGUÉM conhece o tamanho da luta e NINGUÉM tem noção do quanto uma palavra fora do lugar pode ferir o coração de quem se doa 200% pela felicidade de um filho.
Luz. O mundo precisa muito disso.