Hoje, depois de muitos anos, abri e devorei inteirinho um gibi da Turma da Mônica, minha escola de escrita desde antes de eu sonhar em escrever.
Num mundo em que é “cool” autores e escritores citarem apenas nomes que consideram “pensadores” e “intelectuais” como sendo suas referências profissionais, talvez soe maluco alguém dizer que Mauricio de Sousa seja o cronista que mais teve influência em sua forma de transportar ideias para o papel, como é meu caso.
Como se o “pai da Mônica” não fosse um admirável e intelectual pensador, né? Mas, ok. O universo literário tem como um de seus principais ingredientes milenares a tal da arrogância mesmo. Como busco me manter avesso a pensamentos do tipo, não faço a menor questão em fugir de minhas raízes semânticas, porque, pra mim, é um baita orgulho ter Mauricio como mentor, mesmo que ele desconheça minha simples existência.
Desfrutar de uma publicação do Cebolinha na tarde desta sexta-feira foi como revisitar meu próprio passado, voltar no tempo.
É incrível como, mesmo aos 34 anos e diante de uma atordoada quarentena, algo tão simples tenha conseguido me transportar para o mágico bairro do Limoeiro, aquele que sempre sonhei em morar quando criança. Poderia ter imergido a essa leitura antes? Obviamente. Entretanto, a realidade é que o digital, inevitavelmente e infelizmente, tem sim nos distanciado do papel.
Claro que o olhar agora acaba sendo também técnico, divagando cada centímetro das páginas e apreciando detalhes relacionados à ilustração, roteiro, traços, diálogos, fontes, gírias, padronizações, contextos culturais, coloração, termos regionais, respeito à diversidade, qualidade de impressão, inclusão, enfim… prática inevitável, já que, sendo adulto, pai e trabalhando em comunicação, consigo ter um pouco a dimensão do cuidado e, o quão profissional e com amor cada detalhe é construído, da ideia até a banca.
Apesar dessa chamada observação técnica (não para avaliar, mas para aprender e admirar), é incrível como todo encanto pela Turma e a fantasia ao virar de cada página permanecem intactos dentro de mim. Algo que somente a narrativa construída pelo genial Mauricio de Sousa pode proporcionar de forma atemporal, uma vez que, também com brilhantismo, conseguiu, ao longo de tantas décadas, transmitir à sua equipe o espírito, o conceito, a missão e os valores de sua obra.
Nascido e criado em Guaianases, bairro da periferia de São Paulo/SP, lembro-me de que nunca tive condições de comprar as revistinhas. Para ter acesso a elas, era necessário esperar que meus primos emprestassem as deles depois de lerem.
Além da leitura em momentos do dia, como na hora de fazer o nº2 no banheiro, por exemplo (quem nunca? rs ), Cebolinha, Cascão, Mônica, Magali, Chico Bento e dezenas de outros brilhantes personagens, eram meus companheiros inseparáveis na hora de pegar no sono. Sem que tivesse a menor noção, o hábito acabou por desenvolver de alguma forma minha leitura e escrita, mas isso eu descobriria de fato ao menos uma década depois.
O pós-leitura para dormir também se mostrava fascinante. Agora, em 2020, enxergo de forma mais límpida que era nesse momento onde o legado do Mauricio se fazia presente na vida do menino Fernando, pois, ao fechar o gibi e os olhos para descansar, era acometido por sonhos fascinantes, que, de tão especiais, mais pareciam conto de fadas.
Sim, sim… a imaginação me permitia ser um deles. Um novo personagem da turma, que também navegava por altas aventuras inesquecíveis, em um mundo repleto de amigos, de amor, de bolo de fubá da mãe da Magali, de tolerância, de igualdade, de goiaba do Nhô Lau, de pureza… sem perversidade, cujo choros sempre se sucediam com boas gargalhadas e abraços sinceros.
Eram sonhos criados pelo subconsciente para, quando despertasse, pudesse me sentir revigorado e vivo no objetivo em continuar lutando para compreender aquela vida real de garoto pobre, periférico e abandonado pelo pai. Era preciso continuar sonhando com um mundo que refletisse o colorido bairro do Limoeiro.
E, se isso acontecia comigo, acredito que milhões de outras crianças também possam ter vivido relação similar com a Turma da Mônica, de acordar melhor e mais forte, de abrir uma revistinha e se ver livre da realidade cinza por alguns eternos minutos.
É essa compreensão que pretendo transmitir quando falo no legado do Mauricio, entendem? São momentos que fazem toda diferença no itinerário de uma criança marginalizada pelo Estado.
– Nossa, Guifer. Mas você era criança. Como tinha consciência disso tudo? –
Não, amigxs. Não tinha.
São percepções que me vieram hoje e se somaram a outra que já tinha, relacionada à dimensão do que representa a ‘Turma da Mônica’ e a ‘Mauricio de Sousa Produções’ ao Brasil, e o quão pouco reconhecido é o autor perto do que deveria ser, mesmo após exportar para 40 países um produto nativo de qualidade inquestionável e extremamente premiado, e, consequentemente, contribuir tanto para nossa economia diante de tantos licenciamentos de suas marcas.
Turma da Mônica fez e faz muito por nossas gerações e pela educação do nosso povo. Minha torcida é que o protagonista disso tudo possa sentir-se reconhecido, abraçado e receber todas as homenagens possíveis ainda em vida. O mínimo que a gente espera para alguém que nos fez tão feliz, é essa pessoa também se sinta feliz e realizada com, ao menos, nossa real gratidão.
Até pq, fato sabido é que o brasileiro, incluindo imprensa, publicitários e órgãos públicos, costumam exaltar sem parcimônia qualquer artista gringo que porventura atravesse nossa fronteira para compartilhar sua arte (muitas vezes de talento duvidoso).
Mauricio de Sousa não é nosso Walt Disney. Talvez Walt Disney seja o Mauricio de Sousa deles.
Obrigado, Mauricio. Minhas gerações continuarão aprendendo com você.
Enquanto eu viver, sua história, digital ou impressa, jamais morrerá!