Já reparou que, quando não estão diretamente ligadas a nós, as dores parecem não doer mais? Como não nos comovem da forma que deveriam e como não fazem mais a gente refletir sobre a brevidade da vida e a importância dos momentos e detalhes?
Já reparou que são milhares de mortes diárias, mas raramente alguma nos toca por mais de 24 horas, nos tira alguma lágrima ou merece mais do que um “meus sentimentos” na rede social.
Afinal, o que aconteceu com a gente?
A única certeza antes da pandemia era a de que tínhamos uns aos outros.
Mas a com a banalização da vida, o fato é que temos velado nossos entes e encarado nossos lutos com a frieza de quem degusta chocolates com uma mão e segura o celular com a outra, como se fossem perdas indiferentes, levando o ‘eternamente irreparável’ com a naturalidade de quem descarta um pedaço de papel amassado no lixo.
Lembro-me de como ficávamos num extremo choque quando, há um ano, víamos Itália e Espanha anunciando mais de 600 óbitos diários cada. Perdíamos a fome, o sono, tínhamos crises de ansiedade, e um zelo absurdo pela vida de quem amamos e até desconhecidos.
Agora, morrem quase 3.000 irmãos por dia aqui no Brasil e agimos como se estivéssemos num universo completamente paralelo de sociedade já imunizada. Jantamos vorazmente, dormimos feito pedra, e, como se a pandemia fosse sido um pesadelo (já superado) que tivemos há um século, nos reunimos para churrascadas aos finais de semana. É como se o amor próprio e amor ao próximo fossem meros artigos de luxo.
Afinal, o que aconteceu com a gente?
Se procedemos de forma indiferente com as mortes violentas por asfixia de pessoas que tinham a vida toda pela frente, como reagiremos ao vizinho que sente fome? A mãe em situação de rua que amamenta seu bebê na calçada e ao relento? Ao idoso que morre aos poucos sem remédio e sem assistência? A criança no orfanato que clama por uma dignidade que é sua por direito?
Veja bem, este post está indo ao ar depois de atingirmos oficialmente o número de 156.077.747 de casos da Covid-19 em todo o mundo, com 3.256.034 de pessoas já mortas pela doença.
Na verdade, não gosto de me referir como sendo ‘números’, pois nenhuma delas foi apenas isso. Eram, em cada jornada individual, o amor da vida de alguém ou alguns, pais dedicados, mães amorosas, filhos exemplares, avós babões, netas cuidadosas, recém-casados, recém-formados; humanos especiais aos colegas de trabalho, queridos na escola, vizinhos prestativos, futuros gênios da humanidade, enfim…
Não eram simples algarismos, entende? Estamos falando de seres plurais, cada um dotado de sua necessária individualidade e donos das mais variadas formas de habilidades, características, dons, talentos, valores, ideologias e anseios. Todos tiveram seus sonhos dilacerados e deixaram tudo isso para trás ao descerem a sepultura para toda eternidade.
E pensar que, há pouco mais de um ano, essa realidade seria imaginável apenas em filmes de ficção científica. E pensar que, essas milhares de pessoas que encerraram suas trajetórias, sequer tinham noção de que viveriam tanto tempo para falecerem de uma causa que nem existia há dois anos. Maluco isso, não?
Mas, conforme mencionei nos primeiros parágrafos, além da tragédia propriamente dita, o que tem preocupado é a forma como o – geralmente tão presente no dia a dia – espírito humanitário tem escapado entre nossos dedos.
O que precisamos ‘pra ontem’?
Resgatar nossos valores? Trabalhar nossa espiritualidade?
Quem explica?
A psicologia? A filosofia? A antropologia? Você que me lê?
Ou essa resposta está somente dentro de cada um de nós?
Já não há mais medo em sair dessa pandemia da mesma forma que entramos. O pavor agora está em sairmos humanos piores.