Ontem à noite, enquanto retornava do trabalho, vi uma menina encostada na pilastra de uma estação com seu cracházão da USP pendurado no pescoço. Não identifiquei o curso, mas era USP, e ela aguardava o Metrô sentido à periferia, ao extremo Leste.
De relance, meu lado babaca vociferou um pensamento antigo que tinha: “que ridículo usar crachá do trampo ou de universidade no transporte coletivo se a pessoa nem está mais nesse ambiente. Quer aparecer, ostentar onde estuda, e blá, blá, blá…”.
Porém, de forma imediata me permiti observar a mesma cena, mas por outra ótica que jamais me passou pela cabeça. Era uma menina negra, bem jovem, com olhar tímido e triste, e roupas, digamos, mais “surradas”. Visivelmente uma pessoa da periferia, de condição social aparentemente humilde e que aparentemente voltava pra casa após um exaustivo dia de estudos buscando por progresso a si e aos seus.
Comecei então refletir e teorizar sobre um possível contexto de vida dela, e a única coisa que consegui concluir sobre a exposição do tal crachá foi:
“Cara, já pensou no tamanho do orgulho que essa menina tem por ter chegado à USP? Já pensou quantas dificuldades cruzaram o caminho dela desde a infância até ali?
Será que o pai é presente ou a mãe segura as pontas sozinha?
Será que ela consegue se dedicar ao próprio desenvolvimento ou precisa ajudar cuidar dos irmãos?
Será que ela fez todas as refeições hoje no campus?
Bixo, imagine o orgulho dessa família!
Um sopro de esperança em meio ao caos dos menos favorecidos!
Está certíssima em ostentar seu ‘troféu’ para o mundo inteiro saber que ELA CONSEGUIU, sacou? Pq só ela sabe o caminho tortuoso que a levou nesse lugar de destaque, ainda mais sendo mulher e negra em um país machista e racista como o nosso.”
Como fui babaca em julgar – não só ela, mas também outras pessoas que sempre vi com crachá na condução e jamais me propus à uma reflexão e compreensão de contexto.
Claro que nunca deveria sequer ter julgado algo neste sentido pq não tenho nada a ver com isso, não me compete, e óbvio que, neste caso, estou supondo desafios sobre a vida de alguém que nem conheço.
Contudo, fico à vontade em falar isso tudo pq, mesmo que eu esteja equivocado sobre a narrativa que criei sobre ela, digo com convicção que SIM: essa é a realidade de muitos jovens da periferia. Inclusive foi a minha.
Vi nela o Fernando Guifer de alguns anos atrás, sabe? Venho da periferia em condições mega adversas, sem o pai presente, com a mãe/avó se desdobrando pelo sustento e eu precisando trabalhar aos 14 anos para contribuir.
Só Deus sabe o que precisei fazer para entrar na faculdade em 2007 e seguir buscando meus sonhos de lá pra cá. Só Ele sabe o orgulho que eu tinha em ter conquistado na época meu crachá da Uninove diante de tanto esforço, sem ter dinheiro para comer uma coxinha no intervalo, usando sempre a mesma roupa velha e com pensamento de desistência passando diariamente pela cabeça.
Foquei pq tb tinha o objetivo em conquistar e o desejo em inspirar meus iguais quando voltasse pra quebrada. O compromisso nunca foi só comigo mesmo.
E no subúrbio somos aculturados, desde a infância, ao pensamento de que “não temos direito”, de que “não é pra nós”, e que estamos apenas fadados às migalhas que lá chegarão via políticos, mídia e as raras iniciativas privadas. Essas mentiras precisam deixar o vocabulário dos menos favorecidos pra ontem. O jovem de “bairros dormitórios” pode, sim! Tem direito, sim! É pra ele, sim!
Portanto, conseguiu um bom emprego? Ostente seu crachá no trem. Passou no vestibular? Deixe seu crachá da faculdade à mostra. Você merece!
Não há, absolutamente, qualquer motivo para constrangimento, pelo contrário. Aliás, quantas pessoas um crachá universitário pode inspirar num bairro sem perspectivas? Hein?
Simplesmente imensurável.
Essa menina me representou e representa milhares de histórias que cruzam as catracas do transporte nas comunidades diariamente.
Enfim… feliz demais pela reflexão de hoje e por vir dividi-la com vocês.
Mais um paradigma quebrado significa mais um dia que valeu a pena ser vivido.